quinta-feira, 19 de setembro de 2013

marcos e memórias





Guardo preciosos momentos
no porta-joias da minha memória.
Alguns são como joias de família...
que ultrapassam tempos, pessoas e histórias.

Infelizmente, quando jovem, meu pai gostava de caçar; gosto que sempre causou divergências e arestas em nossa tão imensa e intensa afinidade. Pois vejam o quão incompatível era: eu, uma ecologista nata, filha de caçador! E por mais que ele fosse 'correto' (?!) e respeitasse tanto a caça (bicho) quanto as épocas de caça (temporadas) - sempre o censurei abertamente, deixando clara a minha feroz intolerância.

Entretanto, o que seria paradoxo nos uniu, ainda mais.

Sempre comentávamos as propagandas cujo teor era um alerta ao perigo de se ter armas em casa. Algumas delas recorrentes, 'batidas', de praxe: dois amiguinhos estão brincando quando, de repente, um ajuda o outro a pegar a arma do pai escondida em cima de um armário e... Bo(o)m, muitos devem se lembrar (ou pelo menos supor) do final trágico que se seguia.

Durante minha infância e adolescência, a casa da avó Zezé foi meu paraíso. A começar pelo fato de que lá sempre tinha, no mínimo, meia dúzia de cães (e às vezes até mais de uma dúzia) perdigueiros Pointer inglês (só anos mais tarde chegou Vamp - o primeiro dobermann). Além disso tinha horta, fogão a lenha, galinheiro, criação de lacraias e tenebrions, acarás bandeira, jardineiras, pitangueira, mangueira e até parreira (que na época do Natal, sombreava o imenso terraço ao ar livre deixando-o carregado de cachos de um inesquecível roxo-azul-aveludado).

Lá dentro móveis antigos e carrilhões, oratórios, cristaleiras, pesados LPs na vitrola, cachepots e castiçais. Na cozinha ensolarada, um plástico grosso e transparente protege a toalha de renda richelieu sobre a mesa; ali, vários potes de vidro eram preenchidos por doces de fruta em compota. Barata que sou, sempre gostei de doce e meu preferido era o de figo em calda. Demorava um dia inteiro para fazer... e quando eu me impacientava, minha avó dizia que era o ingrediente 'Tempo' que dava toda aquela doçura! Eu acreditava. E ainda acredito.

(Nunca mais comi um doce de figo como o dela. Pois se "É o tempo, filha!" É também o amor, vó! )

Ah... e tinha a banheira...! AMO banheiras! Tomar banho era sempre a última aventura do dia: um mundo quente e aquático me aguardava. E lá eu ficava mergulhada e feliz até a 'vó Zezé' abrir a porta do banheiro, descobrir que eu tinha acabado com toda a água quente e que já estava com a pele dos dedos mais enrugada que maracujá maduro!
De cabeça baixa e cabelos pingando, eu saía obedientemente da banheira enquanto ela resmungava de brincadeira e me enrolava na toalha.
Eu sempre levava a mesma bronca - e ela sempre me deixava 'esquecida' por lá. Era como um acordo. Coisas de 'vó'. Coisas de amor e respeito mútuo.

Terraço, árvores, aquários (com os acará bandeira), horta, cães, galinhas, uvas e armas faziam parte do inventário deste sobrado na Rua Halfeld parte baixa (aliás, lembro-me de muitos colegas de escola nos anos 70/80 ficarem surpresos com galinhas sendo criadas bem no centro da cidade!) .

Companheiro do único irmão, meu tio nunca escondeu as armas de caça que ambos guardavam num cômodo à parte chamado de 'o Escritório'. Além é claro, dos incontáveis livros, era lá também que ficava o grande freezer (com chave!!!) onde vovó guardava seus doces em compota, que serviam tanto para oferecer e presentear as visitas, quanto para nós - os netos, comerem com educação. Assim que, quando meninota, eu não tinha muita noção do que era realmente, e para a maioria das pessoas: um escritório de verdade.

Confesso que já roubei muitas, mas muitas colheradas de doce antes deles ficarem sólidos e minha avó passar a chave no tal freezer - mas sempre, SEMPRE respeitei as armas.

Espingardas calibre 36, 22, 12. De dois canos, de repetição, munição de fogo central ou fogo circular. Eu convivia com um vocabulário que, embora não soubesse exatamente o que queria dizer, sempre me soara familiar. (Tanto que o cheiro do óleo que meu pai usava para limpar as armas - é uma das mais poderosas lembranças olfativas que guardo lacrada nas profundezas da alma.) Logo, aquele universo, exceto pelo fato de que CAÇAR era MATAR ANIMAIS, tinha um quê de... afeto instintivo.

As armas longas, 'perfumadas' e brilhantes de óleo, enfileiradas na vertical e encaixadas num móvel específico para elas: pareciam elegantes guerreiras - deusas Dianas transmutadas. E na minha cabeça de criança, se armas tinham um cão (como a própria deusa da caça e da Lua), não podiam ser tão ruins assim. Eram, sim, obrigadas pelos homens maus (no caso: todos os caçadores, meu tio e meu pai inclusos) a matar bicho! Mas poderiam ser convencidas a defender os bichos contra os seres humanos maus, por exemplo: disparar sozinhas no mato para assustar os caçadores, fazer pactos com o Caipora, falhar/mascar o tiro e deixar o bicho escapar...
Assim, eu olhava fixamente para a '12' e, julgando-a matriarca, a quem as outras espingardas seguiam e obedeciam, passava as instruções para ela na véspera da caçada.
E eu acreditava que ela ouvia.
E continuo acreditando.
(Talvez até hoje eu tenha esta mania de personificar, dar vida a certos objetos. (...) Ai, ai. Qualquer dia procuro um analista.)

Certo é que, quando eu estava com 7 para 8 anos, meu pai achou que a melhor maneira de evitar qualquer tipo de 'acidente caseiro com armas de fogo' - seria me ensinar a manejá-las. Porém, num momento que me recordo sério e solene, ele me fez prometer três coisas antes de me permitir colocar as mãos numa arma...
Mas, bem, melhor isso ficar 'prum segundo ataque de prolixidade literária'!




OBS 1: Cabe observar que sou CONTRA qualquer tipo de VIOLÊNCIA (com armas ou não) e que este relato, tendo um mote deveras incomum e pessoal, deve estar, CLARO, inserido no contexto de décadas passadas, quando Ecologia e Desarmamento ainda não eram assuntos em voga.
( Infelizmente, ao menos para mim, essas armas não existem mais senão na minha memória.)

OBS 2: E que também - CLARO - nunca matei nem bicho, nem gente! Mas simplesmente ADORO uma barraquinha de tiro ao alvo!!! Onde tiver uma festa com elas: me convidem que eu vou! (e não me venha com 'espingarda de rolha' só porque sou mulher e baixinha, não, viu, SôDono da Barraca!!!)



Barbacena
2013

foto Felipe Saleme

sacralidades




matas:
sempre sagradas
catedrais

às grandes árvores
(de tantas vivências)
- meu respeito
amor e reverência


foto Felipe Saleme

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

as luas de prata e os amores platônicos






(Sonhei que o futuro 
me fez um convite...
mas como se ele 
ainda nem existe?!)

Ou:

(As luas de prata e os amores platônicos)


arrumo minhas malas
e sequer sei o destino
algo em mim quer o novo
outros cheiros
outras línguas
medo e desejo
lucidez e desatino

no fundo deito a primavera
e as meias de capim cheiroso
num dos lados
com cuidado
frescos xales de cachoeira
as saias rendadas de teia
e o colar de gotas de orvalho
pras noites de lua cheia

(e assim pra você vou estar 
- livre feliz e inteira) 

foto Web

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

ah... jardins há





                         (Solanum lycocarpum)


e os jardins que não plantamos...

pois
que venha me visitar
o solitário lobo guará

serena estarei
no manso terreiro
varrido com ramo
sob a luz do luar




Anhangá 

2013

foto Adriana Barata

em chuva há ar




a chuva que cai lá
deixa perfume no ar
espalha espelhos no chão
onde pego o céu com a mão

e não é só isso não!

quando a cantoria tem fim
até o mais singelo capim
tem brincos d'água
- se enfeita
sonhando com a colheita






Anhangá / Serra da Vala Funda 
2013

foto Adriana Barata