feixes de lenha
faixas de luz
foram-se os galhos
ficou a raiz
FAXINA
‘ ...do
Latim FASCINA, “feixe de gravetos” (sentido que ainda existe em nosso idioma),
de FASCIES, “feixe, faixa”.
É interessante saber que a
“faxina” era o resultado material de uma limpeza feita no chão, sendo que
atualmente a palavra passou a nomear o ato de fazer a limpeza. ’
Extraído do site
‘origemdapalavra.com.br’
Sempre
adorei uma faxina.
Digo
‘sempre’, assim, só por dizer; não me vem à memória ‘desde quando’, exatamente,
comecei a gostar delas. Talvez tenha usado para intensificar o tempo e
supradimensionar o prazer que tenho ao realizar estas grandes limpezas.
Gosto das grandes faxinas. Aquelas completas,
que vão das gavetas dos guarda-roupas às prateleiras da geladeira (banho no
pinguim incluso).
Do teto ao
chão; lustres, portas, maçanetas, janelas, trincos e paredes (mas bem tenho
pena de desfazer as teias de aranha; as que vejo – não destruo! E minha
condição de alto míope é, certamente, um atenuante para quaisquer
eventualidades...).
Cômodas,
poltronas, quadros, armários. Mesas, cadeiras, estantes, vidros, livros,
ferramentas. Roupas de cama e de corpo, bibelôs, tapetes, potes, papéis,
pedras, cristais e mantimentos.
Momentos de
pertencimento. De (re) encontros.
Reviro e
revivo. Limpo a casa e lavo a alma.
Na Anhangá, meus verdes janeiros (e
fevereiros e marços...), de vital solitude mateira, sempre incluem uma faxina
geral para renovar o ano.
Em
2015 não foi diferente. Só usei menos água e mais paninhos para livrar a casa
da poeira que vem do terreiro. Que anda mais seco, bem mais seco.
Caixas, cadernos, baús. Versos antigos, fotos esquecidas, cartas escritas e
recebidas no século passado; me redescubro na adolescente apaixonada, na
criança contemplativa, na jovem contestadora, na mulher pueril. Vejo o tempo
crescer dentro dos meus olhos e me enxergo girando na incansável ciranda da Vida.
Mas
algo há de imutável: meu coração, mente e alma desde sempre comprometidos e
mergulhados no amor por “matos e bichos”.
As
solitárias Viradas de Ano na Anhangá sempre me trouxeram para mais perto de mim
mesma, do eco da menina que fui - e que sabia exatamente o que queria ser
quando crescesse. É nela que confio. É ela que tento escutar no silêncio
poderoso que faço por lá.
Desta vez, voltei para a cidade carregando na mochila um resquício da faxineira
rural, e decidi fazer uma revolução no apartamento de minha mãe.
Adoro aquele momento “tudo de pernas para o ar” – a vívida lembrança do caos
inicial é a delícia suprema do pós-faxina.
Mamãe, sentadinha na cadeira da sala, ficou de “cabelos em pé” com o furacão
inesperado que invadiu seus dias tranquilos de caseira rotina.
Contas pagas há cinco anos e roupas sem usar há mais de dois: tiveram seus
destinos traçados. Desmontei armários, descobri a cola quente e reconfirmei meu
temor infantil acerca das furadeiras elétricas.
Pus
alguns pregos nas paredes, costurei sete ou oito almofadas, furei vários dedos
várias vezes, ganhei alguns roxos, sanei vazamentos com silicone e arrumei
tempo para replantar uma meia dúzia de rúculas.
Finalmente decifrei a manha de um aspirador de pó que desligava sozinho e a
real utilidade de cada uma de suas ‘embocaduras’ (a propósito: sou tarada por
aspirador!).
Passadas duas semanas e a energia fluía – renovada - por todos os cômodos da
casa.
Outras duas semanas pro meu “cafofo” no andar de cima, e pronto! Tudo em seus
lugares!
Eu
iria, enfim, retornar à vida citadina. E diria até que com um pouco mais de
gosto (ou bem menos contrariada por ter saído do mato).
Mas... não era bem isso que aquele espírito faxineiro havia decidido para
mim.
Ah... a FAXINA! Eis que ela, por própria conta (e contra a minha vontade),
juntou uns panos, umas vassouras (quiçá, desconfio eu, um aspirador ultra mega
possante) e mais uns produtos de limpeza profunda (e procedência abissalmente
duvidosa), a fim de eliminar o que considerasse empoeirado dentro e fora de
mim.
Já
no final de 2014 comecei a sentir sua presença na casa da minha vida (na
verdade ela chegou bem antes, mas isto é um outro texto.).
Começou até delicada, sem fazer muito barulho ou bagunça, e apagou o chip do
meu celular. Limpou minha agenda, esvaziou minha caixa de mensagens, me privou
de lembranças e contatos.
Avisou-me, assim, que chegara - e de vez. Mala, rodo, pá, cuia e flanela. Era
ela. Era interna.
Olhei ao redor. Depois de muitos e longos dias de intensa faxina: tem coisa
melhor do que saborear a “faxina feita”? Uma explosão de detalhes para
despertar e alimentar os sentidos: cheiros, brilhos, texturas, funcionalidade,
beleza e ordem. Aquela simetria estética milimetricamente buscada e o saber
exatamente onde TUDO está – é quase orgástico!
Ok,
confesso: sou obsessiva.
Mas,
para nossa alegria, até certas ‘mazelas psico-comportamentais’ têm lá suas
vantagens: parafusos, livros, caixas, contas, tintas, sapatos, pastas, panelas,
clips, canetas, bolsas, roupas, pratos e papéis - tudo impecavelmente limpo,
guardado, organizado e, quando necessário - devidamente etiquetado.
Faxinas nas casas do mato e cidade feitas, era, pois, chegada a hora de
alcançar a última fronteira, um último e inusitado cômodo: meu PC.
Cômodo sempre em expansão, cheio de novos telhados e puxadinhos: é onde mora
meu estimado e invisível amigo Arquivista.
É com ele que comungo escritos e olhares. Letras, cores, frases, cenas,
imagens - e lá vai ele me decifrando em códigos binários de zeros e uns.
Ainda hoje me surpreende sua complexa simplicidade: eu entro com todas as
combinações e arranjos possíveis (e imprevisíveis) do alfabeto ao pantone - e
ele me traduz só com dois numerozinhos.
Avisa-me que guarda tudo lógica e matematicamente organizado; salva meu
trabalho, salva minhas imagens, meus documentos, meus pensamentos, me salva de
mim e de minha caótica (des)virtualidade.
Talvez ele, lá de dentro, me veja velha.
Levemente confusa e ultrapassada.
(No
fundo, sabe que sou manuscrita.)
Admito que andei um tanto relapsa em relação ao amigo. Também ele andava lento
e confuso. Assim que, sem mais delongas, comunicar-lhe-ia sua carência efetiva:
uma boa duma formatação! Há tempos não lhe dava um alívio e transferia o peso
de sua memória para um HD externo.
Bem,
estava mais do que na hora de fazer isto.
Mas...
Não
houve boas-vindas.
A porta estava emperrada. Ele abrira a porta antes.
Abrira a porta para a pessoa errada.
Milhares
de fotos, contos, crônicas, poemas, roteiros. Textos inteiros, partes, começos,
metades...
Sequências editadas, escaletas montadas, argumentos esqueletados; diálogos,
falas, pesquisas, planos, desenhos de cenas, dezenas de personagens
esboçadas.
Quantas
sementes de ideias perdidas em terras lavadas. Levadas pela correnteza que jorrou
do balde duma Faxineira. Malvada. Visita indesejada, travestida de faxineira
nem faxineira era - era ladra.
Tudo
me levou. Tudo deixou vazio. De resto, só o rastro de seu perfume virótico
empestando meu HD.
Cadê?
Cadê
aquela foto do meu pai e sua última bacalhoada? Cadê aquela imagem da nascente
na Anhangá com um brilhozinho inexplicável no canto direito da tela? Cadê
aquela ideia supimpa para o livro das bruxas primas? Cadê aquela foto tremida
do gavião asa-de-telha que quase pousou no meu chapéu? Cadê aquela sequência
editada cheia de cortes que me tomaram horas de trabalho para cicatrizarem
invisíveis? Cadê tudo aquilo que não existe mais?
Backup.
Ok,
cópia de segurança. Ah... e o que fazer com esta insegurança inata ao que não é
real?
Guardadas as devidas proporções (meu caso é
ínfimo) e entendi o que sentem os que têm suas lembranças roubadas, devastadas
por uma catástrofe.
Fui
baixar um e-book e caíram-me as prateleiras da biblioteca inteira. Vou ficar
bem; só com algumas cicatrizes da amnésia virtual causada por esta Faxineira
ladra que atende pelo nome de “HELP.exe”.
Erro
fatal. Fatalidades.
Impermanências.
Permanecem a fé e o sonho; mantenho a crença
na sabedoria da Vida e levo a alma pra varanda, à espera do NOVO que virá.
2014/2015. Anos de grandes faxinas. As voluntárias
prazerosas e as amargas facínoras.
A
primeira - e mais revolucionária de todas - fica prum outro momento
escrevinheiro. Muitas virão. E serão assunto recorrente.
Eu
sigo me libertando.
São pesados feixes
de lenha
são suaves faixas
de luz
mas bem sei que ao
final
- ao essencial -
tudo que é se reduz
Anhangá
2014
foto Adriana Barata
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