quarta-feira, 24 de junho de 2015

ouro em pó

  



    Certamente aquele abacateiro tinha menos de 50 anos...
    Mas era sob sua dadivosa sombra que se reunira mais de uma centena de amigos e familiares de Dona Marta e Seu Derly; ali comemorando suas Bodas de Ouro.
    Ah... Há quanto tempo eu não participava de uma missa campal, sob a cúpula divina da primeva igreja: o céu azul celeste!
    Ah, e como estava azul o céu daquele 11 de outubro. Já primavera, ainda sem chuvas.

    Terreiro capinado, terra nua varrida, exposta – um tapete. Muitos e singelos bancos de madeira bruta rodeavam o altar, também de madeira, coberto com uma toalha branca bordada.  Logo atrás dele, uma cortina de flores brancas e amarelas sorrindo, frescas, a enfeitar os olhos da pequena multidão. E, bem ao lado, sob uma rendada sombra projetada por um dos galhos do abacateiro: duas poltronas.
    Macias, de um cinza fechado como céu carregado, pouco antes da chuva desabar.
    Havia algo de especial nelas. Talvez fosse a primeira vez que saiam de dentro de casa, da sala; exceto, claro, em dias de grandes faxinas, quando quase tudo vai para o terreiro; ou quando da reforma do telhado.
  Mas naquela manhã – era diferente.
  Deslocadas naquele ambiente, se destacavam; tornavam-se inegavelmente especiais, ganhavam ainda mais maciez e status de ‘local de honra’. Sob a densa sombra rendilhada, simbolizavam o aconchego em meio às durezas da vida.  
  Durante toda aquela manhã, até pouco mais de meio-dia, as duas poltronas, coladas uma à outra - eram de Marta e Derly.
  Antes do início da missa, abaixei-me diante das poltronas para lhes elogiar a elegância.
  Um bem cortado vestido cinza-prateado e um delicado par de sapatos de salto; uma impecável camisa cinza-azulada e um fino par de sapatos lustrados: assim o casal celebrou seus 50 anos juntos. Com a alegre beleza dos nubentes.

  Conscientemente ressaltei os ‘cinzas’ desse dia quente de céu azul sem nuvens... E, diante desta seca histórica - não é tão difícil reconhecer meus motivos.
    Céu de chumbo. Chuva pesada.
    Durante todo o percurso até a serra, às margens das estradas, tanto das de terra quanto das asfaltadas: sinais de queimada. Horrendo manto negro estendido sobre a pele nua da terra. Terra que fica desprotegida. Sem mato. Sem água. Sem vida.

    Vivificada, após uma missa tão especialmente bonita e verdadeiramente tocante, fui cometer meu pecado – do qual ainda pretendo me libertar –, o hábito de fumar.
    Procurei por um dos muitos bancos, por fim desocupados, e, confortavelmente sentada à sombra, acendi meu cigarro.
    Antes mesmo que eu soltasse a primeira baforada, ganhei companhia. Seu Antônio, professor aposentado primo de Seu Derly, gentilmente pediu-me licença e sentou-se ao meu lado. Em seguida tirou do bolso da camisa um pequeno maço de cigarros de palha.

    Fumante com eu, meu amigo Felipe (com quem fui de carona juntamente com o futuro Médico de Família Zé Vitor, um dos quatorze netos do casal) sabiamente levou uma garrafinha plástica com um dedo de água no fundo: nosso ‘cinzeiro responsável’.
    Já ali, em meio à festa, alguns balaios forrados com sacos plásticos serviam de lixo. Assim, apagava a bituca na terra poeirenta e jogava-a no estiloso lixo improvisado.

    Vícios e cuidados à parte, durante a gostosa prosa com Seu Antônio, falamos, diante do calor blasfemicamente infernal, sobre a seca.
    “É...”, disse ele reacendendo o cigarro apagado, “mas se é da vontade de Deus, nós temos que aceitar.”
    À citação do nome do Altíssimo, Seu Antônio, homem religioso e educado que é, levantou automaticamente a aba do chapéu. Gesto respeitoso que sempre copiei e admirei em vivências interioranas.

    Naquele momento fui desrespeitosa com Seu Antônio:
    “Não, Ele não quer não, Seu Antônio! Absolutamente. O senhor está errado! Garanto ao senhor que é muito mais irresponsabilidade nossa, que vontade divina! Ora, não haveria Ele de destruir o equilíbrio perfeito que criou, o senhor não acha? “Faça a tua parte que eu lhe ajudarei”. E o que estamos fazendo, Seu Antônio?! Colocando nas mãos Dele a culpa que é nossa! Somos nós que estamos destruindo  o mundo que Ele nos confiou a morada. De certo não está sendo e nem será impunemente. Já pensou em que tipo de mundo todas estas crianças viverão? “

    Desvio o olhar de algumas crianças que brincam distraídas enquanto aguardam na fila o momento de abraçar e beijar os ‘noivos’.
    Como o ato de imaginar é poderoso...
    Internamente, em pensamento, eu enfrentava o olhar assustado e magoado de Seu Antônio; por fora, tudo o que fiz foi pronunciar um fraco e arrastado “É...”.
    Sorri para ele e ele me sorriu de volta. Concordamos serenamente que Deus sabe o que faz.

    Nunca. Nunca eu me permitiria sequer parecer grosseira com um ser humano tão gentil e cheio das sapiências da vida como o Seu Antônio. Normalmente discuto, com bastante educação (mas também veemência), questões relativas à proteção do meio ambiente. Sempre acreditei que depois que a Terra deixou de ser considerada sagrada - uma covarde usurpação começou. De Mãe provedora à Virgem violada. Cruel, incessante e inescrupulosamente violada.
    Eu, há muito (ou desde sempre), escolhi defender a Vida.

    Olhei ao redor. Em pensamento, abafei o alegre burburinho dos convidados. E também de todos os bichos silvestres e domésticos, visivelmente contagiados pela bela festança.
    Fez-se um silêncio iluminado. Para onde quer que eu olhasse havia sorrisos, de todas as idades. A felicidade era palpável, estava nos rostos daquelas pessoas. Vinha do coração e chegava aos lábios. Simples assim.
   Sorri novamente; eu também estava feliz. Bem feliz, aliás. Tirando a seca.

   Não sei o porquê de eu sequer ‘discordar um pouquinho’ da afirmação conformada do meu companheiro de pito. Talvez tenha sido a benfazeja sensação de ser abençoada, por estar ali, participando daquela riqueza toda.
    Talvez porque quisesse acreditar (com toda a minha então pouca fé) que sim - é Vossa real e suprema vontade.  Depois acaba o castigo.     Havemos de aprender, ó, Pai Nosso, que estais no céu. Santificada volte a ser a Vossa Terra.

    Alma alimentada de homilia, prosa e poesia, era hora de, deselegantemente, encher a pança e lamber os beiços. O cheiro da boa e farta comida mineira feita em fogão a lenha: era irresistível! O tamanho das panelas impressionava; o sabor, a variedade, a abundância, tudo alimentaria os melhores comentários – inevitáveis – no pós-festa. Meus inclusive.

(Aproveito para parabenizar o meu amigo e produtor, décimo primeiro filho de Dona Marta e Seu Derly: o Cézar. E todos os Oliveira Campos com quem ele contou para tornar real o ouro dessas Bodas!)

  ‘Almocei feito um padre’.
    E quem disse que todo o provérbio ‘é batata’? Infalível? Amigos, há exceções. Padre Everaldo não repetiu. Estava com certa pressa. Sua paróquia o esperava; nobres compromissos.
    Assim que, Felipe e eu, confesso por mim e por ele, só não cometemos o pecado da gula porque éramos responsáveis por dar carona ao muito querido e simpático padre. Teríamos de partir.
    Antes, um doce de leite com queijo (com gostinho de quero mais) comido na gostosa intimidade da cozinha. Depois, para saborearmos em casa, um corte de doce caseiro de pera nos foi ofertado por Dona Marta. Confesso que estas doses de carinho/açúcar ajudaram a compensar a leve tristeza de ter de sair dali tão ‘temprano’, como se diria mais musicalmente, em espanhol.
    Queria ter conversado com o senhor que tocou violão durante a missa, queria ter conversado com cada um dos onze irmãos, noras, genros, netos, netas, primos, primas, amigos, vizinhos. Queria ter me enriquecido mais com o ouro dessas pessoas.

    Poeira e pó, mata-burros e porteiras, pastos, pontes e pouca água nos brejos de secas taboas.
    Papo bom, sol escaldante.
    Numa curva da estrada, numa rápida e saudável toada roceira: um convidado está indo de volta para casa. É um senhor de cabelos muito brancos e blusa muito verde. Também ele tem seus nobres afazeres, suas criações o esperam. Oferecemos-lhe carona e ele de pronto aceitou.
    Paramentos do padre ajeitados no banco e seguimos viagem; agora em cinco: o senhor e eu atrás, Felipe e o padre na frente, e Deus – com Sua onipresença.
    Várias foram as vezes em que invocamos o nome de Deus. Não em vão.

    “Amanhã, nóis vai tudo subi lá no arto do cruzeiro – mode rezá e pedi a Deus pra mandá chuva pra gente...”

    Santo seja o senhor, cujo nome eu não tive tempo de perguntar. Santa seja a tua reza. Milagrosa seja a tua reza. Ouvida seja a tua prece aos pés do cruzeiro, no alto da serra, à beira da mata.  Agradeço a tua fé, agradeço a tua oração que a mim e a todos beneficia. Que Deus te ouça, amigo.
    E se “a fé move montanhas”, que esta mesma fé nos traga água (que vida é em abundância).
    Que aprendamos - finalmente - que fazemos parte desse Todo que chamamos de Natureza. Que somos responsáveis por manter o mistério da Vida neste planeta, em nome de nossa porção racional e divina.

    Logo desceu o bento senhor, logo chegamos ao asfalto, logo chegamos a Juiz de Fora.
    Viagem boa é assim, quando o caminho em si já é um grande encontro.
    Felipe, fotógrafo sensível e talentoso, teve um suave filtro empoeirado para difundir sua luz; e eu: inesquecíveis e preciosos momentos para guardar no porta-joias da memória.
    Ouro. Bodas de Ouro.



Serra de Ibitipoca

foto Felipe Saleme

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