Sempre escrevi para gavetas.
Mentira, escrevia também para meu
pai. Enquanto vivo, leu praticamente tudo que escrevi (exceto o meu Diário) – e
na hora. Bastava eu chegar com umas folhas na mão e pedir para ele dar uma
olhada.
Ele adorava televisão, nesta ordem: filmes,
telejornais e, dependendo, um ou outro programa humorístico. Mas Hitchcock, Plantão Jornal Nacional ou a piada do século – iriam esperar caso eu chegasse empunhando
papéis.
Extremamente culto, inteligente e
honesto – sua leitura (extremamente crítica) me bastava.
Eu já estava com 16 anos quando ele
ainda “canetava” meu texto: riscos em E aditivo após vírgulas, inversão de
orações, troca de palavras, abertura de parágrafos... cortes de parágrafos
inteiros.
“O que você quis dizer com isso,
Adriana?”
“Peneira, vai. Não sobra nada que preste.”
“Não, Adriana... aí também
não, tá metafórico demais!”
“Não floreia que vira literatice”
A partir dos 16, eu passei a
levar uma lapiseira e a caneta dele foi ‘desativada'. Também deixava um espaço
maior entre as linhas do texto para que ele pudesse fazer suas observações. Não
modificações! (Ele riscava tanto o texto, que nem eu mesma, depois, sabia o que
havia escrito.)
Ok. Eu quase sempre acatava todas
as substituições (opa, não eram observações?).
Mas também aprendi a fazer valer
as minhas “sensações das palavras”.
Papai escrevia. E bem. Mas
tínhamos estilos diferentes. Por vezes, francamente diferentes.
Lembro-me de um conto que escrevi
para um concurso de revista. O prêmio era uma joia. Não, eu não queria
propriamente a joia, mas ela tinha uns diamantezinhos e... sim – eu iria vendê-la.
Então compraria minha tão sonhada máquina de escrever.
Na época eu escrevia a mão e, aos fins de semana,
ia para o escritório que meu pai dividia com meu tio, seu irmão, para
datilografar meus textos. Mas, claro, eu “catava milho”. Ele, por sua vez, era
rápido e preciso.
Tirou a capa da novíssima máquina elétrica do irmão, e
começou. Eu ditava o conto. Íamos bem, a primeira página já saíra do rolo,
mas...
‘Vida em estado bruto’
“Não. Não. Eu me recuso a
escrever isso! Isso tá uma porcaria, Adriana! ‘Vida em estado bruto’; o que, diabos,
você quer dizer com isso?”
Não ganhei o concurso. Mas ganhei
meu primeiro embate. E, anos depois, papai me deu minha tão sonhada Olivetti. A Abigail, que é o nome que se dá para
as velhas senhoras cheirosas.
Nunca deixei de escrever.
Máquinas, papéis, computadores.
Certas coisas só nascem no papel, ou têm ao menos sua semente plantada nele. Outras nascem só a lapiseira, outras ainda por canetas de tinta preta.
Certas coisas só nascem no papel, ou têm ao menos sua semente plantada nele. Outras nascem só a lapiseira, outras ainda por canetas de tinta preta.
Embora tudo isto seja “a
mais pura frescura” (palavras de papai), pois quando pensamentos têm de nascer - até o lápis de olho da amiga vale (Tá bom, era
importado... o que quase me valeu a amiga!).
“Tá bom. (pausa) Mas pode
melhorar.”
Dos trinta pra frente, era esta a
frase que eu - invariavelmente - escutava após a leitura do texto.
Em poemas
ele opinava pouco, até pelo tamanho reduzido (então era onde eu exercia a liberdade.). Implicava mesmo era quando eu cismava
de poetizar a prosa, chuchar uma metaforazinha aqui, uma aliteraçãozinha acolá e aí:
“Lá vem literatice.”
‘É prosa lírica, pai!’.
Ele ainda leu alguns dos meus
roteiros. Mas só os acadêmicos.
Os poemas eróticos, nunca mostrei.
As peças de teatro, leu todas. (Chegou a esboçar
elogios para O Rio que Ri.)
No livro infantil, feito originalmente para
minha sobrinha Marina, ele
fez algumas observações (acatadas) e pela primeira vez - recebi um elogio
rasgado:
“Magnífico!”
Era pelas ilustrações...
Tirando o fato de terem sido
feitas por uma total amadora (brinco de chamá-las de “ilustrações em estilo
primitivista”), eu me enchi de orgulho.
(Orgulhoso mesmo ficaria ele por saber que aquele livrinho colorido, exemplar único - 17 anos depois está
em vias de publicação pela Lei Municipal Murilo Mendes, de Juiz de Fora)
Não consigo explicar ‘vida em
estado bruto’
(uma felicidade de ser...? Tão genuína que quase machuca?)
Mas eu a sentia
cada vez que algo escrito na solidão íntima do meu ser era lido por meu
parceiro intelectual, meu mestre sagaz (e quase sempre também - meu algoz) - Francisco
Barata.
Por conta dele sinto-me pedra ainda bruta, mas estranhamente lapidada por dentro. (Hoje
me “caneto” sozinha. E ainda tenho muita tinta pra gastar...)
Tudo que é escrito: nasce para ser
lido. Mesmo que só o leia seu escritor.
Assim como viver e morrer - se
irmanam.
Eu sempre escrevi para gavetas.
E este blog era só mais uma delas.
Criado em 2011 no intuito de
reunir uns “trem escrito” na era pós-muderna digital, nunca pensei em divulgá-lo
(mesmo porque, muita coisa já foi publicada no Facebook.).
Porém, nas últimas semanas,
devido a uma intensidade poética incontida (e postada, rs) – recebi uma proposta,
via FB, que me deixou em comunhão com a dita “vida em estado bruto”:
Rosane Carvalho Adriana, escreve um livro de poesias, por favor!
Minha resposta (em estado de
graça):
Adriana Barata Ahhhh... Cachinhos Orvalhados Rosane
Carvalho... que delícia de pedido! Mesmo eu não
sendo uma poetisa "stricto sensu", rs (muito menos da estirpe de Renata De Aragão Lopes), vou
tomar pra mim esse elogio e pensar na sua sugestão!
Não sou poetisa.
Mas sou
corajosa.
Abro a gaveta para os ventos ventarem. E se, por ventura levarem algo
que lhes seja gratamente sonoro ou perfumado – ficarei feliz. Profundamente
feliz.
Não é um livro, Rô. Mas há um
certo cheiro de papel impregnado nele – o Perfume da Existência.
(Gracias por gostar de “me
ler”.)
E gracias também a quem abrir a
gaveta e se espalhar pelas letras e olhares que guardo nela.
Um beijo-folha,
Adriana Barata
Juiz de Fora, madrugada de 01 de julho de 2015
Anhangá
2013
foto Adriana Barata
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